O segredo de Francisco: tempo para o ócio silente
Deixo aqui os meus melhores votos para o novo ano,
desejando a todos saúde, paz, realizações felicitantes e também o que me parece
de suprema urgência: ao longo do ano todo, algum tempo para o ócio silente.
Uma das características da nossa época, que causa
estragos sem fim, é a agitação geral e frenética, consumista, que tudo devora.
O nosso tempo não tem lugar para o ócio, aquele ócio de que fala a scholê
grega. Vivemos, como dizia o grande bispo do Porto D. António Ferreira Gomes,
na "agitação paralisante e na paralisia agitante", isto é, não
vivemos verdadeiramente. Porque o autenticamente humano está recalcado. Vivemos
na dispersão agitada e agitante, sem encontro autêntico connosco e, portanto,
também com os outros e com o essencial da vida. A net contribui frequentemente
para fazer aumentar esta agitação alienada e alienante, e até estupidificante,
pois todos podem agora, escondidos no anonimato cobarde, pronunciar-se sobre
tudo, mesmo desconhecendo completamente as temáticas e as suas complexidades,
ou, mediante manipulações algorítmicas a favor de interesses, enganar. Na presente
agitação e atomização temporal, submersos pelo tsunami informativo e pela
competição tóxica, é muito difícil erguer uma identidade pessoal integrada,
íntegra e consistente. Também por isso, não vejo as pessoas mais felizes, pelo
contrário, aumentam as depressões. Realmente, para se alcançar a felicidade, é
essencial o apaziguamento e a serenidade interiores, o estar de bem consigo.
Hoje são conhecidos, através da imagiologia cerebral, os efeitos benéficos da
meditação no cérebro, concretamente sobre o stress e a ansiedade.
Significativamente, o verbo mederi, com o radical "med-", que
significa "pensar, medir, julgar, tratar um doente, curar", está na
base etimológica de três palavras: meditação, moderação e medicina. O reconhecer-se,
a presença de si a si mesmo não significam de modo nenhum narcisismo, pois,
quando se pára, se pensa e reflecte, lá no mais profundo, encontramos o
mistério da Fonte donde tudo provém e a que estamos religados, em interconexão
com todos e com tudo.
Então, de
que é que precisamos? De parar, para que tenham lugar e tempo a contemplação, a
meditação, a oração. E isso só se cumpre com o ócio. A palavra ócio (em latim,
otium, que significa tempo de repouso, vagar, ócio, retiro, solidão, paz) é
solidária com a palavra grega scholê, donde procede a nossa "escola"
e significa ócio, o ócio para a actividade dos homens livres, a liberdade para
pensar e governar a pólis. O ócio da scholê nada tem a ver com a preguiça, que
é um vício e que devemos todos condenar, pois preguiçoso é aquele que não quer
trabalhar, que vive na indolência, à custa dos outros, encostado ao Estado, sem
cumprir diligentemente os seus deveres. O ócio, esse tem a ver com
concentrar-se, contemplar, ser si mesmo, viver. Para lá da agitação devoradora
e da banalidade rasante, parar, ser e estar e viver no melhor, no Divino, na
Beleza, na Vida. Fazer silêncio, precisamente para ouvir o silêncio e o que só
no silêncio se ouve: a voz da consciência e do sentido. Eu vejo o ócio
essencialmente como um parar. Para se poder viver na Vida, no essencial. Tem a
ver com o saborear o instante do vivido, o milagre do ser e de se ser, do
viver. Quando é que se vive? Agora. Viver é fim em si mesmo, na alegria do
viver na plena consciência. A vida não pode esgotar-se, como acontece tão
frequentemente, num meio para outra coisa, para atingir um fim ou fins.
Entendo o
ócio naquele sentido profundo de "tempo" para meditar, pensar,
recentrar-se, ir ao essencial, viver na profundidade. Sem o ócio no sentido da
scholê grega, portanto, da liberdade para poder pensar, não há pensamento
autêntico. Hoje, o que é que temos? Exactamente o contrário do ócio, pois tudo
está transformado em negócio (neg/ócio), predominando os interesses e
esquecendo os valores. No contexto e na rede dos negócios, calcula-se, vale o
mensurável, está-se no uso e domínio da razão calculadora, da razão
instrumental, de que fala a Escola Crítica de Frankfurt, não se pensa
propriamente. Já não há pensamento, porque os negócios, que ocupam todo o
espaço e tempo, são da ordem do cálculo. Foi neste sentido que o filósofo M.
Heidegger preveniu, dizendo que a técnica não pensa. Não pensa, porque é da
ordem do mensurável e do cálculo. Esta é também uma das razões fundamentais
para explicar a situação atual da política e dos políticos, que tanto têm
descido na consideração pública: a cumplicidade entre a política e os negócios.
Tudo se tornou negócio e os políticos não encontram tempo-ócio para ler, para
meditar, para refletir sobre o essencial. O que lhes interessa fundamentalmente,
nesta sociedade-espetáculo, é estar "armados" com respostas rápidas e
imediatas e em consonância com os seus interesses e com o que consideram serem
as expectativas dos seus eleitores, quando lhes aparecer pela frente uma
qualquer televisão ou microfone. No meu entender, e considero isto essencial,
eles têm de encontrar tempo, fazer pausa, para reflectir, meditar, ler o
fundamental. Se quiserem de facto passar a estadistas e estar à altura do
momento verdadeiramente histórico, tão complexo, ameaçador e dramático, que
vivemos.
O Papa Francisco, que, neste nosso mundo global,
talvez seja o líder político-moral mais amado e é um dos mais influentes,
levanta-se muito cedo todas as manhãs. Para quê? Para, no ócio silente e
criador, antes de todas as suas tarefas, poder rezar, contemplar, encontrar-se
consigo no mais profundo de si, lá onde se encontra com o mistério da Presença
enquanto Fonte, Deus. Este é o seu segredo: "Entrar no mistério significa
capacidade de assombro, de contemplação; capacidade de escutar o silêncio e
sentir e ouvir o sussurro desse fio de silêncio sonoro no qual Deus nos
fala."
Antônio Borges