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ENTREVISTA DO PAPA FRANCISCO AO JORNAL EL PAIS - 20.01.2017(trechos)

El Pais: Nos últimos dias de pontificado, Bento XVI disse sobre seu último período à frente da Igreja “As águas desciam agitadas, e Deus parecia estar a dormir”. Também sentiu essa solidão? A cúpula da Igreja estava dormindo em relação aos novos e antigos problemas das pessoas?
Eu, dentro da hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da Igreja (bispos, padres, freiras, leigos...), tenho mais medo dos anestesiados do que dos que estão a dormir. Daqueles que se anestesiam com o mundanismo. Então, negociam com o mundanismo. E isso preocupa-me... Que... Sim, tudo está quieto, está tranquilo, se as coisas estão bem... ordem demais. Quando se lê os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, havia confusão, havia problemas, as pessoas  movimentavam-se. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O anestesiado não tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está anestesiado. E hoje em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida quotidiana, não? E, talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor dessas pessoas! Se não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas, feche a porta e aposente-se.
Não acha que, entre muitos católicos, possa existir algo como o síndrome do irmão do filho pródigo, que consideram que se presta mais atenção aos que se foram do que aos que permaneceram dentro, observando os mandamentos da Igreja? Lembro-me de que, numa das suas viagens, um jornalista alemão lhe perguntou por que não falava nunca da classe média, daqueles que pagam impostos...
Aqui há duas perguntas. O síndrome do filho mais velho: é verdade que os que estão cómodos numa estrutura eclesiástica que não os compromete muito ou que têm posturas que os protegem do contato se sentirão incómodos com qualquer mudança, com qualquer proposta do Evangelho. Gosto de pensar muito no dono do hotel onde o samaritano levou aquele homem que tinha sido espancado pelos ladrões, roubado pelo caminho. O dono do hotel sabia da história, que foi contada pelo samaritano: tinha passado um padre, olhou, estava atrasado para a missa e deixou-o jogado no caminho, não queria se manchar com o sangue, porque isso o impedia de celebrar, segundo a lei. Passou o advogado, o levita, e viu e disse: “Ai, não me vou meter aqui, perderei muito tempo, amanhã no tribunal serei testemunha e... não, não, melhor é não me meter.” Parecia nascido em Buenos Aires, e desviou-se assim, que é o lema dos portenhos: “Não se meta”. E passa outro, que não é judeu, que é um pagão, que é um pecador, considerado o pior de todos: comove-se e levanta o homem. O espanto que o dono do hotel teve é enorme, porque viu algo incomum. Mas a novidade do Evangelho cria espanto porque é essencialmente escandalosa. São Paulo fala-nos do escândalo da cruz, do escândalo do Filho de Deus feito homem. O escândalo bom, porque também Jesus condena o escândalo contra as crianças. Mas a essência evangélica é escandalosa para os parâmetros da época. Para qualquer parâmetro mundano, a essência é escandalosa. Portanto, o síndrome do filho mais velho é, em certa medida, o síndrome daquele que já está acomodado na Igreja, do que de alguma maneira tem tudo claro, tudo fixo sobre o que é preciso fazer, e que não me venham predicar coisas estranhas. Assim se explicam os nossos mártires, que deram a sua vida por predicar algo que incomodava. Essa é a primeira pergunta. A segunda: eu não quis responder ao jornalista alemão, mas em vez disso disse-lhe: “Vou pensar, você tem um pouco de razão”. Falo continuamente da classe média sem mencioná-la. Uso uma palavra de Malègue, um romancista francês: ele fala da “classe média da santidade”. [Joseph Malègue foi o autor de Pedras Negras: As Classes Médias da Salvação e de Augustine.] Falo continuamente dos pais de família, dos avós, dos enfermeiros, das enfermeiras, das pessoas que vivem para os demais, que criam os filhos, que trabalham... A santidade dessas pessoas é enorme! São elas também que levam a Igreja em frente: as pessoas que vivem do seu trabalho com dignidade, que criam os seus filhos, que enterram os seus mortos, que cuidam dos avós, que não os trancam em lares de idosos, essa é nossa santa classe média. Do ponto de vista económico, hoje a classe média tende a desaparecer, obviamente, cada vez mais, e pode correr o risco de se refugiar nas cavernas ideológicas. Mas essa “classe média da santidade”: o pai, a mãe de família, que celebram a sua família, com os seus pecados e as suas virtudes, o avô e a avó. A família. No centro. Essa é a “classe média da santidade”. Malègue teve uma grande intuição nesse ponto, chegando a dizer uma frase que pode impressionar. Num dos seus romances, Augustine, quando num diálogo um ateu lhe diz: “Mas o senhor acredita que Cristo é Deus?”, e lhe apresenta o problema: acha que o Nazareno é Deus? “Para mim, não é um problema”, responde o protagonista do romance. “O problema para mim seria se Deus não se fizesse Cristo”. Essa é a “classe média da santidade”.

Santidade, o senhor falava de cavernas ideológicas. A que se refere? O que o preocupa sobre este aspecto?
Não é que me preocupe. Eu aponto a realidade. Estamos sempre mais cómodos no sistema ideológico que foi elaborado, porque é abstrato.

Isso se exacerbou, se potencializou nos últimos anos?
Sempre houve, sempre. Não diria que se exacerbou porque há muita desilusão com isso também. Creio que havia mais no tempo anterior à Segunda Guerra Mundial. Digo. Não pensei muito. Estou repassando um pouco... Sempre, no restaurante da vida, oferecem-nos pratos de ideologia. Sempre. Você pode-se refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a realidade.

Santo Padre, durante estes anos, nas viagens, vi o senhor se emocionar e emocionar muitos dos que escutavam as suas palavras... Por exemplo, em três ocasiões muito especiais: em Lampedusa, quando perguntou se tínhamos chorado com as mulheres que perdem os seus filhos no mar; na Sardenha, quando falou sobre o desemprego e as vítimas do sistema financeiro mundial; nas Filipinas, com o drama das crianças exploradas. Duas perguntas: o que a Igreja pode fazer, o que está a ser feito e como os governos estão a agir perante isto?
O símbolo que propus no novo órgão de Migrações – no novo esquema, o Departamento de Migrações e Refugiados, que preparei diretamente com dois secretários – é um salva-vidas laranja, como os que todos conhecemos. Numa audiência geral, veio parte dos que trabalham no salvamento dos refugiados do Mediterrâneo. Eu os cumprimentava, e este homem segurou esse objeto e começou a chorar, apoiou-se no meu ombro e chorava, chorava: “Não consegui, não cheguei, não consegui.” E, quando se acalmou um pouco, disse-me: “A menina não tinha mais de quatro anos. Entrego-lhe isto”. E isso é um símbolo da tragédia que estamos a viver. Sim.

Os governos estão a responder à altura?
Cada um faz o que pode ou o que quer. É um juízo difícil de fazer. Mas, obviamente, o fato de o Mediterrâneo se ter transformado num cemitério nos deve fazer pensar.

Queria perguntar-lhe se sente que a sua mensagem, a sua viagem às periferias, aos que sofrem e estão perdidos, é acolhida, acompanhada por uma estrutura talvez acostumada a caminhar noutro ritmo. O senhor sente que avança num ritmo e a Igreja noutro? Sente-se acompanhado?
Acho que não é assim e, graças a Deus, a resposta em geral é boa. É muito boa. Quando pedi às paróquias de Roma e aos colégios, houve quem dissesse: “Isso foi um fracasso”. Mentira! Não foi um fracasso! Uma alta porcentagem das paróquias de Roma, quando não tinham uma casa grande à disposição ou quando a casa paroquial era pequena, sei lá, os fiéis alugaram um apartamento para uma família imigrante... Nos colégios de freiras, às vezes sobrava lugar, arrumaram um espaço para as famílias migrantes... A resposta é maior do que se acredita, não é divulgada. O Vaticano tem duas paróquias, e cada paróquia tem uma família imigrante. Um apartamento do Vaticano para uma família, outro para outra. A resposta é contínua. Não 100%. Qual porcentagem eu não sei. Mas eu diria que 50% acho que sim. Depois, o problema da integração. Cada imigrante é um problema muito sério. Eles fogem do seu país. Por fome ou guerra. Então, a solução deve ser buscada ali. Por fome ou por guerra, são explorados. Penso em África: o símbolo da exploração. Inclusive, ao dar independência, algum país lhes deu independência do solo para cima, reservando-se o subsolo. Ou seja: são sempre usados e escravizados... Então, a política de acolhimento tem várias etapas. Há um acolhimento de emergência: você tem que receber [o migrante] e tem que recebê-lo porque, caso contrário, ele afoga-se. Nisso Itália e Grécia estão a dar o exemplo, um exemplo muito grande. Em Itália, inclusive agora, com os problemas que tem com o terremoto e todas essas coisas, continua a se preocupar com eles. Recebendo-os. Claro: eles chegam a Itália porque é o país mais próximo. Creio que em Espanha chegam de Ceuta também. [Sim.] Mas, geralmente, a maioria não quer ficar em Espanha, quer ir para o norte, porque buscam mais possibilidades.

Mas, em Espanha, há um muro que separa Ceuta e Melilla de Marrocos. Não podem passar.
Sim, sim, eu sei. E querem ir para o norte. Então, o problema é: recebê-los, sim, mais ou menos por alguns meses, alojá-los. Mas é preciso começar um processo de integração. Acolher e integrar. E o modelo mundial que está à frente é a Suécia. A Suécia tem nove milhões de habitantes, dos quais 890.000 são “novos suecos”, filhos de migrantes ou migrantes com cidadania sueca. A ministra de Relações Exteriores – acho que era, a que foi despedir-se de mim – uma moça jovem, era filha de mãe sueca e pai do Gabão. Migrantes. Integrados. O problema é integrar. Por outro lado, quando não há integração, ficam em guetos, e não culpo ninguém, mas de fato existem guetos. Que talvez naquele momento não perceberam que havia. Mas os meninos que fizeram o desastre no aeroporto de Zaventem [em Bruxelas] eram belgas, nascidos na Bélgica. Mas moravam num bairro fechado de imigrantes. Ou seja, é fundamental o segundo passo: a integração. Qual é o grande problema da Suécia agora? Não é que não venham imigrantes. Não estamos a dar conta nos programas de integração! Eles perguntam-se o que mais podem fazer para que as pessoas venham! É impressionante. Para mim, é um modelo mundial. E isso não é novo. Eu disse logo de cara, depois de Lampedusa... Eu conhecia o caso da Suécia pelos argentinos, uruguaios e chilenos que na época da ditadura militar foram acolhidos ali, pois tenho amigos lá, e refugiados. Claro, depois que você chega à Suécia e lhe oferecem organização médica, documentos, dão autorização para morar... E você já tem uma casa, e na semana seguinte tem uma escola para aprender o idioma, um pouquinho de trabalho... e vai para frente. Nisso San Egidio, aqui em Itália, é um modelo. Os que vieram comigo no avião de Lesbos, e depois vieram outros nove... O Vaticano se encarregou de 22, e estamos a cuidar deles. E eles lentamente se vão tornando independentes. No segundo dia, os meninos já iam ao colégio. No segundo dia! E os pais lentamente encontram o seu lugar, com um apartamento, um trabalho aqui, meio trabalho ali, professores para o idioma... San Egidio tem essa mesma postura. Ou seja, o problema então é: salvamento urgente, sim, para todos. Segundo: receber, acolher da melhor forma possível. Depois integrar, integrar. Integrar.
Santidade, faz 50 anos de quase tudo. Do Concílio Vaticano II, da viagem de Paulo VI e do abraço com o patriarca Atenágoras na Terra Santa. Há quem sustente que, para entendê-lo, convém conhecer Paulo VI. Ele foi até certo ponto o papa incompreendido. O senhor se sente também um pouco assim, um Papa incómodo?
Não. Não. Acredito que, pelos meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. A Evangelii Gaudium, que é o marco da pastoralidade que quero dar à Igreja agora, é uma atualização da Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. É um homem que se antecipou à história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E muitas coisas ele não pode fazer, porque, como era realista, sabia que não podia e sofria, mas oferecia esse sofrimento. E o que pode fazer ele fez. E é o que Paulo VI fez de melhor: semear. Semeou coisas que depois a história foi recolhendo. A Evangelii Gaudium é uma mistura da Evangelii Nuntiandi e do documento de Aparecida. Coisas que foram sendo trabalhadas de baixo para cima. A Evangelii Nuntiandi é o melhor documento pastoral pós-conciliar e que não perdeu a atualidade. Não me sinto incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo tipo de gente, jovens, velhos… Sim, um ou outro por aí não está de acordo, e tem o direito, porque se eu me sentisse mal por alguém não estar de acordo haveria em minha atitude um germe de ditador. Eles têm o direito de não estarem de acordo. Têm direito de pensarem que o caminho é perigoso, que pode trazer maus resultados, que… eles têm o direito. Mas desde que dialoguem, não que atirem a pedra e escondam a mão, isso não. A isso nenhuma pessoa humana tem o direito. Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência. Todos têm o direito de discutir, e quem dera discutíssemos mais, porque isso nos burila, nos irmana. A discussão irmana muito. A discussão com bom sangue, não com a calúnia e tudo isso…
 
Incómodo com o poder o senhor também não sente?
É que o poder não sou eu que o tenho. O poder é partilhado. O poder é quando se tomam as decisões pensadas, dialogadas, rezadas; a oração ajuda-me muito, e me sustenta muito. Não me incomoda o poder. Incomodam-me certos protocolos, mas é porque eu sou assim, da rua.

O senhor está há 25 anos sem ver televisão e, pelo que entendo, o senhor nunca foi muito fã de jornalistas, mas o sistema de comunicação do Vaticano foi totalmente reinventado, profissionalizado e elevado à categoria de dicastério. Os meios de comunicação são tão importantes assim para o Papa? Existe uma ameaça à liberdade de imprensa? E as redes sociais, podem causar um prejuízo à liberdade do indivíduo?
Eu não vejo televisão. Simplesmente senti que Deus me pediu isso, no dia 16 de julho de 1990; fiz essa promessa e não sinto falta. Só fui ao centro de televisão que ficava ao lado da arquidiocese para ver um ou dois filmes que me interessavam, que poderiam servir para a mensagem. E veja que eu gostava muito de cinema e tinha estudado bastante o cinema, especialmente o italiano do pós-guerra, e o poláco Wajda, Kurosawa, e alguns franceses. Mas não ver televisão não me impede de  comunicar. Não assistir televisão foi uma escolha pessoal, nada mais. Mas a comunicação é divina. Deus se comunica. Deus comunicou-se conosco por meio da história. Deus não ficou isolado. É um Deus que se comunica, e falou connosco, nos acompanhou, nos desafiou e nos fez mudar de rumo, e continua a nos acompanhar. Não se pode compreender a teologia católica sem a comunicação de Deus. Deus não está estático lá e olha para ver como os homens se divertem ou como se destroem. Deus se envolveu, e o fez comunicando-se com a palavra e com sua carne. Ou seja, eu começo daí. Tenho um pouco de medo quando os meios de comunicação não se podem expressar com a ética que lhes é própria. Por exemplo, existem maneiras de se comunicar que não ajudam, que atrapalham a unidade. Dou um exemplo simples. Uma família que está a jantar e as pessoas não se falam, ou assistem televisão, ou as crianças estão com seus telemóveis a enviar mensagens a outras pessoas que estão fora. Quando a comunicação perde o carnal, o humano, e se torna líquida, é perigosa. Que se comunique em família e que as pessoas se comuniquem, e também da outra maneira, é muito importante. O mundo virtual da comunicação é muito rico, mas você corre o risco se não vive uma comunicação humana, normal, de tocar! O concreto da comunicação é o que fará que o virtual da comunicação siga pelo bom caminho. Ou seja, o concreto é inegociável em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas. A comunicação é fundamental e deve continuar a ser. Há perigos como este em todas as coisas. É preciso ajustá-los, mas a comunicação é divina. E há defeitos. Eu falei sobre os pecados da comunicação numa conferência na ADEPA, em Buenos Aires, a associação que reúne os editores da Argentina. E os presidentes me convidaram para um jantar em que tive de fazer essa conferência. Lá eu apontei os pecados da comunicação e disse-lhes: não caiam nisso, porque o que os senhores têm em suas mãos é um grande tesouro. Hoje em dia comunicar é divino, sempre foi divino porque Deus se comunica, e é humano porque Deus se comunicou humanamente. Portanto, funcionalmente há um dicastério, obviamente, para dar um encaminhamento a tudo isso. Mas o dicastério é uma coisa funcional. Não é porque hoje é importante se comunicar, não. Porque a comunicação é essencial para a pessoa humana, porque também é essencial a Deus!

maquinário diplomático do Vaticano funciona a todo vapor. Tanto Barack Obama quanto Raúl Castro agradeceram publicamente o seu trabalho na aproximação. No entanto, existem outros casos, como a Venezuela, Colômbia e o Médio Oriente, que ainda estão bloqueados. No primeiro caso, inclusive, as partes criticam a mediação. O senhor teme que a imagem do Vaticano sofra? Quais são suas instruções nesses casos?
Eu peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida pela imagem. Mas pela honestidade, pelo serviço, esses são os critérios. Não acredito que seja bom maquiar um pouco. Às vezes podemos cometer erros, a imagem se ressentirá, bom, isso é uma consequência, mas foi feito com boa vontade. A história julgará as coisas. E depois há um princípio que é claro para mim, que é o que tem de prevalecer em toda a ação pastoral, mas também na diplomacia do Vaticano: mediadores, não intermediários. Por outras palavras, fazer pontes e não muros. Qual é a diferença entre o mediador e o intermediário? O intermediário é aquele que tem, por exemplo, um escritório de compra e venda de imóveis, procura quem quer vender uma casa e quem quer comprar uma casa, eles se põem de acordo, ele cobra a comissão, presta um bom serviço, mas sempre ganha algo, e tem direito porque é seu trabalho. O mediador é aquele que se coloca ao serviço das partes e faz com que as partes ganhem mesmo que ele perca. A diplomacia do Vaticano tem de ser mediadora, não intermediária. Se ao longo da história a diplomacia do Vaticano fez uma manobra ou uma reunião e encheu o bolso, então ela cometeu um pecado muito grave, gravíssimo. O mediador faz pontes, que não são para ele, são para que os outros caminhem. E não cobra portagem. Faz a ponte e se vai. Para mim essa é a imagem da diplomacia vaticana. Mediadores e não intermediários. Fazedores de pontes.
 
Essa diplomacia vaticana pode ser estendida à China em breve?
De fato, existe uma comissão que está a trabalhar há anos com a China e que se reúne a cada três meses, uma vez aqui e outra em Pequim. E há muito diálogo com a China. A China tem sempre aquela aura de mistério que é fascinante. Há dois ou três meses, com a exposição do Museu do Vaticano em Pequim, estavam felizes. E no próximo ano eles virão aqui no Vaticano com suas coisas, seus museus.

E o Santo Padre, irá em breve à China?
Irei quando me convidarem. Eles sabem. Além disso, na China as Igrejas estão cheias. Pode-se praticar a religião na China.

Tanto na Europa quanto na América, as consequências de uma crise que não acaba, o aumento da desigualdade e a ausência de lideranças fortes estão a dar lugar a formações políticas que estão captando o mal-estar dos cidadãos. Algumas delas – que costumam ser chamadas de antissistema ou populistas – aproveitam o medo das pessoas de um futuro incerto para construírem uma mensagem de xenofobia, de ódio em relação ao estrangeiro. O caso de Trump é o que mais chama a atenção, mas também há os casos da Áustria e até da Suíça. O senhor está preocupado com esse fenómeno?
É o que chamam de populismo. Essa é uma palavra enganosa, porque na América Latina o populismo tem outro significado. Lá significa o protagonismo dos povos, por exemplo, os movimentos populares. Organizam-se entre eles... é outra coisa. Quando ouvia falar em populismo aqui não entendia muito, ficava perdido, até que percebi que eram significados diferentes dependendo dos lugares. Claro, as crises provocam medos, alertas. Para mim, o mais típico exemplo dos populismos europeus é o 1933 alemão. Depois de [Paul von] Hindenburg, a crise de 1930, a Alemanha estava destroçada, tentava levantar-se, buscava a sua identidade, estava à procura de um líder, de alguém que devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler que disse “eu posso, eu posso”. E toda a Alemanha votou em Hitler. Hitler não roubou o poder, foi eleito pelo seu povo, e depois destruiu o seu povo. Esse é o perigo. Em momentos de crise, o discernimento não funciona, e para mim é uma referência contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a identidade e defendamo-nos com muros, com arames farpados, com qualquer coisa, dos outros povos que podem nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso procuro sempre dizer: dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da Alemanha de 1933 é típico, um povo que estava naquela crise, que procurava a sua identidade, e então apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, e deu-lhes uma identidade distorcida e sabemos o que aconteceu. Onde não há diálogo... As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem o direito de controlar suas fronteiras, quem entra e quem sai, e os países que estão em perigo – de terrorismo ou coisas desse tipo – têm mais direito de controlar mais, mas nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do diálogo com os vizinhos.

O senhor observa na Europa de hoje, Santo Padre, sinais dessa Alemanha de 1933?
Não sou um técnico nisso, mas sobre a Europa de hoje remeto-me aos três discursos que fiz. Os de Estrasburgo e o terceiro a quando do Prémio Carlos Magno, que foi o único prémio que aceitei porque insistiram muito por causa do momento que a Europa vivia, e aceitei como um serviço. Esses três discursos dizem o que penso sobre a Europa.

A corrupção é o grande pecado do nosso tempo?
É um grande pecado. Mas acredito que não devemos atribuir-nos a exclusividade na história. Sempre houve corrupção. Sempre. Aqui. Se alguém ler a história dos papas depara-se com cada escândalo... Para me referir à minha casa, sem me meter na do vizinho. Tenho vários exemplos de países vizinhos onde houve corrupção na história, mas fico com os meus. Aqui houve corrupção. E pesada, hein. Basta pensar no papa Alexandre VI, nessa época, e em dona Lucrécia com seus “chazinhos” [envenenados].

O que lhe chega de Espanha? O que lhe chega sobre a receção que há em Espanha da sua mensagem, sua missão, seu trabalho...?
Hoje, dw Espanha, acabam de me chegar alguns polvorones e um turrón de Jijona (doces) que estão aí para oferecer aos rapazes.

Hahaha. A Espanha é um país onde o debate sobre o secularismo e a religiosidade está vivo, como o senhor sabe...
Está vivo, muito vivo.

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