Como
devem jejuar os discípulos de Cristo
«Há
realmente um jejum não corporal e uma temperança não material: a abstinência do
mal pela alma convertida. Foi justamente em vista desta que nos foi prescrita a
abstinência de alimentos. Por isso jejuai do mal; sede fortes contra os desejos
incompatíveis; repeli o ganho ilícito; matai de fome a avareza dos dinheiro;
nada haja em tua casa fruto de violência ou de roubo. Que te adianta se não dás
carne ao corpo, mas mordes o irmão pela maledicência? Ou que vantagem se não
cornes do que é teu, e tomas injustamente aquilo que é do pobre? Que piedade é
esta que só bebe água, mas trama enganos e tem sede de sangue pela
perversidade? Sem dúvida alguma Judas jejuou com os onze; mas por não ter antes
dominado a avareza, de nada lho serviu a abstinência para a salvação. Também o
diabo não come, pois é espírito incorpóreo; mas pelo mal do orgulho caiu até o
mais fundo. Da mesma forma nem um dos demónios foi condenado por comer carnes
assadas nem por muita bebida ou embriaguez. Por natureza não necessitam de
alimentos. Mas noite e dia vagueiam pelos ares, artífices e ministros da
maldade, e põem seu esforço nas maquinações contra nós. Inveja e calúnia os
corromperam. Tendo eles caído da maior familiaridade com o bem, será bom deles
fugir se quisermos ser homens que têm parentesco com Deus.
Seja
portanto a sabedoria o educador da vida dos cristãos; e nem queira a alma saber
dos danos do mal. Se, apesar de rejeitar o vinho e as carnes, somos culpados
pela intenção de pecar, declaro e garanto desde já que nenhuma utilidade tem
para nós uma mesa só com água, legumes e sem sangue, porque a manifestação
exterior não concorda com a disposição interior. A lei do jejum veio para a
pureza da alma. Se a manchamos com maus projetos premeditados e outras ações,
de que nos serve beber só água? Para quê tantos sacrifícios? Quem se aproveita
do Jejum corporal, se não purifica a mente? Nenhuma vantagem há se a quadriga
for de prata resistente e bem ordenada, mas for louco o seu condutor. Que
adianta uma nave bem construída, se se embriaga o piloto? O jejum é fundamento
da virtude. O fundamento da casa e a quilha do navio serão inúteis e prejudiciais,
mesmo postos com muita firmeza, se não forem muito capazes aqueles que depois
irão construir. Da mesma forma não há nenhuma vantagem na abstinência se uma
outra justificação dela não brotar como consequência. O temor de Deus ensine a
língua a proferir aquilo que convém, a não dizer coisas vãs, a conhecer o tempo
favorável e não só a medida, mas a palavra necessária e a resposta sensata. Não
falar às tontas, não caiam as palavras como granizos violentos sobre os
passantes. Pois para isto bem se chama freio aquela débil membrana que liga a
mandíbula à língua para não falar sem ordem nem oportunidade. Bendiz, não
amaldiçoes. Salmodia, não blasfemes. Felicita, não critiques. Que as mãos
precipitadas sejam retidas, como que com cadeias, pela lembrança de Deus.
Jejuamos também porque nosso Cordeiro foi vilipendiado com insultos o
bofetadas, antes dos cravos. Assim devemos jejuar, nós, os discípulos de
Cristo».
[S.
Gregório de Nissa (c. 335-395) | Seleção e tradução: Fr. Isidro Lamelas, OFM
|professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa]
São
João Crisóstomo ensina:
“A
honra do jejum consiste não na abstinência da comida, mas em evitar as ações
pecaminosas; quem limita o seu jejum apenas à abstinência de carnes o desonra.
Praticas o jejum? Prova-me por tuas obras! Perguntas que tipo de obras?
Se
vires um inimigo, reconcilia-te com ele!
Se
vires um amigo tendo sucesso, não o inveje!
Se
vires uma mulher bonita, passe sem olhar!
Que
não apenas a boca jejue, mas também os olhos, e os ouvidos, e os pés, e as
mãos, e todos os membros de nossos corpos.
Que
as mãos jejuem sendo puras da avareza e da rapina.
Que
os pés jejuem, deixando de caminhar para espetáculos imorais.
Que
os olhos jejuem, não se detendo sobre feições belas, ou se ocupando de belezas
exóticas.
Pois
o que é visto é a comida dos olhos, mas se o que for visto for imoral ou
proibido, macula-se o jejum e perturba toda a segurança da alma;ma se for moral
e seguro, o que é visto adorna o jejum. Pois seria absurdo abster-se da comida permitida
por causa do jejum, mas devem os olhos absterem-se até de tocar o que é
proibido. Não comes carne? Então não se alimente de luxúria através dos olhos.
Que
também os ouvidos jejuem. O jejum dos ouvidos consiste em recusar-se a ouvir
assuntos perversos e calúnias. ‘Não receberás notícias falsas’, já foi dito.
Que
a boca também jejue de falar coisas vergonhosas e de ficar reclamando. Pois que
ganhas se te absténs de pássaros e peixes, e mesmo assim mordes e devoras teu
próximo? O que tem fala maligna come a carne de seu irmão, e morde o corpo de
seu próximo.”
O
que São João Crisóstomo nos diz com esta reflexão?
Que
os dias de jejum devem ser especialmente dias para evitarmos o uso desordenado
ou inclusive exagerado dos outros sentidos: evitar o que não devo fazer, falar,
ouvir, desejar; não buscar satisfazer todas as minhas necessidades emocionais e
espirituais; não buscar a todo custo saciar minha solidão; não querer saber
tudo; não exigir respostas imediatas a tudo o que vier à minha mente etc.
Nós
jejuamos buscando a conversão. Portanto, jejuemos de todas estas atitudes
contrárias à virtude. Talvez o seu jejum consista em ser mais serviçal (jejum
da sua preguiça e comodidade), pois, assim como precisamos rezar com o coração,
também precisamos jejuar com o coração.
Talvez
você tenha de jejuar da sua ira, sendo mais amável, mais dócil. Ou jejuar da
sua soberba, buscando ativamente viver a humildade em atos concretos.