Prólogo de S. João (1,1-18): Evangelho imenso, voo de águia que nos impede pensamentos rasteiros, que rasga uma brecha para o eterno: para o «no princípio» (no princípio era o Verbo) e para o «sempre». E assegura-nos que uma maré imensa bate nos promontórios da nossa existência (e o Verbo fez-se carne), que somos alcançados por uma corrente que nos alimenta, que nunca desaparecerá, que na nossa vida há uma força maior que nós. Que um fragmento de “Logos”, de Verbo, acampou em cada carne, há algo de Deus em cada ser humano.
Em cada vida há santidade e luz. E ninguém poderá voltar a dizer: aqui acaba a Terra, aqui começa o Céu, porque Terra e Céu se abraçaram. E ninguém poderá dizer: aqui acaba o ser humano, aqui começa Deus, porque Criador e criatura se abraçaram, e em Jesus recém-nascido homem e Deus são uma coisa só. Pelo menos em Belém.
«Jesus é a narração da ternura do Pai» (“A alegria do Evangelho”, papa Francisco), por isso penso que a tradução, livre mas verdadeira, dos primeiros versículos do Evangelho de João pode soar aproximadamente assim: «No princípio era a ternura, e a ternura estava junto de Deus, e a ternura era Deus … e a ternura fez-se carne, e acampou no meio de nós». O grande milagre é que Deus já não plasma o ser humano com pó do solo, do exterior, como foi no princípio, mas faz-se Ele próprio, ternamente, pó plasmado, criança de Belém e carne universal.
A quantos o acolheram deu o poder… Notemos a palavra: o poder, não só a possibilidade ou a oportunidade de se tornarem filhos, mas um poder, uma energia, uma vitalidade, uma potência de humanidade capaz de ultrapassar os seus limites. «Deus não considera os nossos pensamentos, mas toma as nossas esperanças e expetativas, e condu-las para diante» (Giovanni Vannucci).
Na ternura era a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Uma coisa enorme: a própria vida é luz. A vida vista como uma grande parábola que narra Deus; um Evangelho que nos ensina a surpreender parábolas na vida, a surpreender até nos charcos da Terra o reflexo do Céu. Dá-nos a consciência de que nós próprios somos parábolas, ícones de Deus. Que quem tem a sabedoria do viver, tem a sabedoria de Deus. Que quem passou uma só hora a escutar e a carregar o pranto de uma vida está mais próximo do mistério de Deus do que quem leu todos os livros e sabe todas as palavras.
Do Natal, de onde o infinitamente grande se faz infinitamente pequeno, os cristãos começam a contar os anos, a recontar a história. Este é o nó vivo do tempo, que marca um antes e um depois. Em torno a ele dançam os séculos e toda a minha vida.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins