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O BOM USO DAS CRISES

Crise não é um incidente pontual, mas é um necessário momento de passagem na construção de si. Não há vida sem crise. Não há maturação pessoal que não suponha a experiência da própria crise. Por isso não faz sentido alimentar uma visão puramente negativa da crise. O que nos é pedido diante da crise? Escutemo-la. Escutemos a sua voz. O que ela nos diz? Acolhamos a própria crise como um lugar de aprendizagem, como uma espécie de espelho austero onde nós podemos reencontrar-nos, onde podemos ver para lá das nossas ilusões e subjetividades. O que nos é pedido é que nos deixemos interpelar, pois a crise aparece como um apelo, como uma mensagem que é preciso decifrar. E se não escutamos verdadeiramente a mensagem ficamos mais pobres, pois a crise é uma chance.
* Como gerir a crise?
Crise é apelo a se reconfigurar a si mesmo?
A crise nos faz romper com o conhecido, com o repetido.


Perco-me
no labirinto
dos dias

Ganho-me
no labirinto
dos dias

A poesia
é o perde-ganha


E o labirinto
dos dias
é o labirinto
dos dias

Adília Lopes
in Dobra, Assírio & Alvim
A vida é o perde-ganha. Nessa perda se inscreve a possibilidade inesperada, não óbvia, mas é a porta onde o imprevisto de Deus pode entrar na nossa história. Pode-se fazer um bom uso das crises. Assim se chama o livro de Christiane Singerque que nos desafia a encontrar um ângulo, primeiro cultural e depois civilizacional, para olharmos para as crises que todos atravessamos, quer se conjuguem no plural, quer simplesmente se declinem no singular. A autora propõe essencialmente três coisas.

1. Que num tempo em que escasseiam os mestres, e todos estamos mais ou menos entregues a uma autogestão (para não dizer a um isolamento) devorante da própria vida, as crises «são realmente os grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos». Não escutar, a fundo, o que as crises nos dizem é desperdiçar a ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à vida. Mesmo sabendo que uma crise é sempre um austero mestre para o qual raramente nos consideramos preparados.
 2. Numa sociedade que tantas vezes concorre para afastar-nos daquilo que é importante e vital, as crises funcionam quase como um rito secularizado de iniciação à liberdade e à verdade de Ser. Christiane Singer relata o que um seu amigo antropólogo lhe disse ter escutado a um aborígene: «Não senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações». As nossas sociedades modernas e democráticas têm um elevado ideário para a realização humana: basta pensar nessa tricolor herança da liberdade, igualdade e fraternidade. O problema, porventura, não é o das metas, mas o dos caminhos. Como é que se faz a aprendizagem dos valores que melhor nos podem expressar a nós próprios, nesta dinâmica construção do que é viver e viver com os outros? Aí é que surgem os hiatos, os bloqueios, as incertezas, as demissões. Só os ritos de passagem, desenvolvam-se eles em que quadro for, é que nos colocam realmente em contato com a vida e com a morte, isto é, com a inteireza do destino humano.
 3. Por fim, talvez precisemos compreender que no curso do nosso caminho, coletivo e pessoal, as crises «nos acontecem para que seja evitado o pior». E o que é o pior? Singer escreve: «O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem naufrágios, é ter ficado apenas à superfície das coisas, ter dançado um baile de sombras, ter ficado a chapinhar no pântano do diz que diz, das aparências» e nunca ter habitado uma vida que lhe pertencesse.
  José Tolentino Mendonça, Cardeal

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