Poema “Liberdade”, de Fernando Pessoa, escrito já no final da vida, 1935, e enviado em discreta carta anónima, à revista "Seara Nova", para publicação.
Nessa altura, Fernando Pessoa já tirara a máscara dos seus heterónimos, passando a ser ele mesmo…, e, com grande mágoa, escreve em seu próprio nome, o poema “Liberdade”, como resposta sarcástica ao discurso, em que Salazar insinuara que os intelectuais são preguiçosos e que os livros que têm nas bibliotecas são de duvidoso valor…
Ao logo de 1933-1934 do Estado Novo, o poeta apercebeu-se do cerco cada vez mais apertado à liberdade, cultura e criatividade literária. Os alvos dos seus poemas, no último ano de vida (1935), foram Salazar e o Estado Novo.
Em “Pessoa, uma biografia” de Richard Zenith
LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"