«Não tenho vocação de mártir», confia, ainda que diga que uma pessoa «nunca deve amar-se ao ponto de evitar todo o possível risco de morte que a história lhe coloque à frente. Quem procura de todas as maneiras evitar perigo semelhante, já perdeu a própria vida».
Oscar Arnulfo Romero nasce a 15 de março de 1917 em Ciudad Barrios, El Salvador. Ordenado padre a 4 de abril de 1942, em Roma, onde estava a estudar, regressa à pátria para ser colocado numa paróquia. Mais tarde é nomeado reitor do seminário interdiocesano de S. Salvador, diretor de revistas pastorais e secretário da Conferência Episcopal da América Central e do Panamá. É um homem que conta, conhecido pela sua posição conservadora e tradicionalista, espiritualmente muito próximo do Opus Dei. Por isso são muitos a ficarem atónitos e desagradados quando, em 1970, se torna auxiliar do bispo "progressista" de S. Salvador, porque há o temor de que Romero possa travar a ação inovadora em curso.
Temores e hostilidade também no clero manifestam-se sobretudo quando, em 1977, se torna, surpreendentemente, arcebispo de S. Salvador, a que se contrapõe a alegria do governo e dos grupos do poder, para os quais a nomeação deste bispo com quase 60 anos, totalmente «espiritual» e completamente «dedicado aos estudos», é a melhor garantia de um abrandamento do compromisso pelos pobres que a arquidiocese estava a desenvolver com o predecessor. Há fundadas esperanças de que com ele a Igreja em S. Salvador se afaste de todo o empenho social e político, que a sua ação pastoral se torne "espiritualizada" e portanto ascética, desencarnada, desinteressada de todo o acontecimento político. Assim se interpreta a sua recusa do lustroso Cadillac e do suntuoso palácio de mármore que os proprietários de terras logo lhe oferecem, como também a sua ausência na cerimónia de tomada de posse do ditador.
«Neste cálice o vinho torna-se sangue que foi o preço da salvação. Possa este sacrifício de Cristo dar-nos a coragem de oferecer o nosso corpo e o nosso sangue pela justiça e a paz do nosso povo»
O que aconteceu de extraordinário na vida de D. Romero que transformou o conservador que todos conhecem no batalhador assertivo dos direitos humanos, não é dado sabê-lo, ainda que alguns liguem esta sua mudança ao assassínio do padre jesuíta Rutilio Grande, de quem era amigo, ocorrido poucas semanas após a sua nomeação. Porém é preciso não esquecer que Romero, desde os seus anos de juventude, tinha fama de sacerdote austero, com uma profunda espiritualidade, uma sólida doutrina e um amor especial pelos pobres. Muito simplesmente, diante da opressão e da exploração do povo, observando os esquadrões da morte que matam agricultores, pobres e padres comprometidos, o bispo compreende que só pode tomar uma posição clara. Institui uma comissão para a defesa dos direitos humanos; as suas missas começam a ficar cheias; são memoráveis as suas denúncias dos crimes de Estado que a cada dia são cometidos.
Paga com um progressivo isolamento e com fortes divergências, seja na nunciatura seja no Vaticano, a sua opção preferencial pelos pobres: alguns bispos acusam-no de incitar «à luta de classes e à revolução», ao mesmo tempo que adquire má reputação e é insultado pela direita como subversivo e comunista. «Em nome de Deus e do povo que sofre, suplico-vos, peço-vos, e em nome de Deus vos ordeno, cesse a perseguição contra o povo», diz a 23 de março de 1980, na sua última pregação na catedral. No dia seguinte, ao final da tarde, um sicário penetra na capela do hospital, onde Romero está a celebrar, e dispara diretamente ao coração, enquanto o bispo eleva o cálice no momento do ofertório. Instantes antes tinha dito: «Neste cálice o vinho torna-se sangue que foi o preço da salvação. Possa este sacrifício de Cristo dar-nos a coragem de oferecer o nosso corpo e o nosso sangue pela justiça e a paz do nosso povo».
Desde logo considerado como mártir pelo povo salvadorenho, a causa da sua beatificação inicia-se em 1997, mas rapidamente é dificultada no Vaticano, porque mesmo morto o bispo tem os seus inimigos: pesa como uma sombra sobre o seu trabalho a acusação de ter sido simpatizante da teologia da libertação, ao passo que quem o conheceu bem continua a testemunhar que «Romero não era um revolucionário, mas um homem da Igreja, do Evangelho e, portanto, dos pobres».
Naquela noite sente - escreve-o várias vezes - uma inspiração divina a ser forte, a assumir uma atitude de fortaleza, enquanto no país, marcado pela injustiça social, aumentava a violência: violência da oligarquia contra os camponeses, violência dos militares contra a Igreja que defendia os pobres, violência da guerrilha revolucionária
A causa parecia desbloquear-se com o papa Francisco e começou a esperar-se a beatificação em 2017, ano em que se assinala o centenário do nascimento, mas Bergoglio, surpreendendo todos, reconhece o martírio do bispo Romero a 3 de fevereiro de 2015, e a 23 de maio do mesmo ano torna-se, consequentemente, beato. A Igreja assinala a 24 de março a sua memória enquanto bispo e mártir.
Romero, um pastor
Pode dizer-se que o martírio de Romero está estreitamente ligado ao do padre Rutilio Grande, um jesuíta que tinha deixado o ensino universitário para ir ao encontro dos camponeses numa pequena vila, Aguilares, vivendo num quartinho com uma cama, uma mesa de cabeceira, um pequeno candeeiro, uma Bíblia. Romero era muito seu amigo. Na noite de 12 de março de 1977 Romero velou toda a noite diante do corpo do amigo e dos dois agricultores mortos juntamente com ele numa emboscada. Era arcebispo de San Salvador há poucos dias, não tinha ainda confiança com as suas funções. Naquelas horas experimentou muita comoção vendo o amigo morto e os muitos camponeses que enchiam a igrejinha. Romero - disse um amigo - viu que tinham ficado órfãos do seu "pai" e que agora cabia a ele, arcebispo, assumir-lhe o lugar, ainda que a custo da vida. Naquela noite sente - escreve-o várias vezes - uma inspiração divina a ser forte, a assumir uma atitude de fortaleza, enquanto no país, marcado pela injustiça social, aumentava a violência: violência da oligarquia contra os camponeses, violência dos militares contra a Igreja que defendia os pobres, violência da guerrilha revolucionária.
Romero corrige a difundida vulgata sobre a sua conversão: «Não falarei de conversão, como muitos dizem, porque sempre tive afeto pelo povo, pelo pobre... Antes de ser bispo fui 22 anos sacerdote em San Miguel... Quando visitava os locais sentia um verdadeiro prazer em estar com os pobres e ajudá-los... Chegando a San Salvador, a mesma fidelidade com a qual quis inspirar o meu sacerdócio fez-me compreender que o meu afeto para com os pobres, a minha fidelidade aos princípios cristãos e a adesão à Santa Sé deviam tomar uma direção algo diferente. A 22 de fevereiro de 1977 tomei posse da arquidiocese e à data havia uma sequência de expulsão de sacerdotes... A 12 de março de 1977 ocorre o assassínio do padre Rutilio Grande... teve um forte impacto na diocese e ajudou-me a sentir fortaleza».
Depois de dois anos de arcebispado em San Salvador, Romero conta 30 padres perdidos, entre mortos, expulsos ou chamados para fugir à morte. Os esquadrões da morte matam dezenas e dezenas de catequistas das comunidades de base e muitos fiéis dessas comunidades desaparecem
Romero acredita na sua função de bispo de primaz do país e sentia-se responsável pela população mais pobre: por isso assumiu o sangue, a dor, a violência, denunciando-lhes as causas na sua carismática pregação dominical, seguida pela rádio por toda a nação. Podemos dizer que foi uma "conversão pastoral", com a assunção por parte de Romero de uma fortaleza indispensável na crise em que se encontrava o país. Fez-se "defensor civitatis", segundo a tradição dos antigos Padres da Igreja, defende o clero perseguido, protege os pobres, afirma os direitos humanos.
O clima de perseguição era palpável. Mas Romero torna-se claramente o defensor dos pobres perante uma repressão cruel. Depois de dois anos de arcebispado em San Salvador, Romero conta 30 padres perdidos, entre mortos, expulsos ou chamados para fugir à morte. Os esquadrões da morte matam dezenas e dezenas de catequistas das comunidades de base e muitos fiéis dessas comunidades desaparecem. A Igreja era a principal imputada e por isso a maioritariamente atingida. Romero resiste e aceita dar a vida para defender o seu povo.
Morto no altar durante a missa
Foi morto no altar. Nele queria-se atingir a Igreja que jorrava do Concílio Vaticano II. A sua morte - como mostra claramente o aturado exame documental - foi causada não por motivos simplesmente políticos, mas pelo ódio por uma fé que empastada pela caridade que não se calava diante das injustiças que implacável e cruelmente se abatiam sobre os pobres e os deus defensores. A morte no altar - uma morte sem dúvida mais incerta, visto que se devia disparar de uma separação de 30 metros, comparativamente a uma distância mais curta - tinha um simbolismo que soava como um terrível aviso para quem quisesse prosseguir aquele caminho. O próprio S. João Paulo II - que conhecia bem os dois outros santos mortos no altar, Estanislau de Cracóvia e Thomas Becket de Cantebury - nota-o com eficácia: «Mataram-no precisamente no momento mais sagrado, durante o ato mais alto e mais divino... Foi assassinado um bispo da Igreja de Deus enquanto exercitava a própria missão santificadora oferecendo a Eucaristia». E várias vezes repetiu com vigor: «Romero é nosso, Romero é da Igreja!».
Romero compreende cada vez mais claramente que para ser o pastor de todos devia começar pelos pobres. Colocar os pobres no centro das preocupações pastorais da Igreja, e portanto também de todos os cristãos, inclusive os ricos, era a via nova da pastoral
Romero e a opção pelos pobres
Romero amou sempre os pobres. Quando era jovem sacerdote em San Miguel foi acusado de comunismo porque pedia aos ricos que dessem o justo salário aos camponeses cultivadores de café. Dizia-lhes que, agindo como agiam, não só iam contra a justiça, mas eram eles próprios a abrir a porta ao comunismo. Todos aqueles que o conheceram ainda simples padre recordam a sua comoção e a sua ternura para com os pobres que encontrava. Particular impressão fez o seu interesse pelas crianças engraxadoras de San Miguel, que o levou a organizar uma cantina para eles. Notória, pois, era a sua generosidade. Um pequeno episódio mostra o seu "exagero", como alguém dizia. Tendo recebido uma galinha para comer, viu no caminho uma mulher que pedia ajuda e logo lha deu, não dando atenção aos lamentos do motorista que lhe dizia que no episcopado não havia nada para comer. É verdade que frequentava os ricos, mas pedia-lhes para ajudar os pobres e a Igreja como uma via para salvar a sua alma.
Romero compreende cada vez mais claramente que para ser o pastor de todos devia começar pelos pobres. Colocar os pobres no centro das preocupações pastorais da Igreja, e portanto também de todos os cristãos, inclusive os ricos, era a via nova da pastoral. O amor preferencial pelos pobres não só não abrandava o amor de Romero pelo seu país, pelo contrário, sustentava-o. Nesse sentido Romero não era um homem de fação, ainda que a alguns pudesse parecer, mas um pastor que queria o bem comum de todos, mas a partir, precisamente, dos pobres. Nunca cessou de procurar os caminhos para a pacificação do país.
Romero, homem de Deus e da Igreja
Romero era um homem de Deus, um homem de oração, de obediência e de amor pela gente. Rezava muito: ficava furioso se nas primeiras horas da manhã, enquanto orava, o interrompiam. E era severo consigo próprio, ligado a uma espiritualidade antiga feita de sacrifícios, de cilício, de penitência, de privações. Teve uma vida espiritual "linear", apesar de um carácter não fácil, rigoroso consigo próprio, intransigente, atormentado. mas na oração encontrava repouso, paz e força. Quando tinha de tomar decisões complicadas, difíceis, retirava-se em oração.
Romero tinha construído um amplíssimo ficheiro de citações (cerca de cinco mil) para pregar, extraídas sobretudo do magistério. Vinte dias antes de morrer, a 2 de março de 1980, numa homilia dominical, afirma: «Irmãos, a maior glória de um pastor é viver em comunhão com o papa»
Foi um bispo fidelíssimo ao magistério. Nas suas cartas emerge claramente a familiaridade com os documentos do Vaticano II, de Medellin, de Puebla, da doutrina social da Igreja e em geral os outros textos pontifícios. Fiz o elenco das obras da sua biblioteca: grande parte é ocupada por textos do magistério. Nas cartas do arquivo estão conservados os discursos que Romero escrevia para dois núncios quando estes tinham de explicar os textos conciliares. O cardeal Cassidy conta que em 1966, com Romero e outro sacerdote, tinham muitas vezes dias de aprofundamento sobre os textos do Vaticano II. Romero tinha construído um amplíssimo ficheiro de citações (cerca de cinco mil) para pregar, extraídas sobretudo do magistério. Vinte dias antes de morrer, a 2 de março de 1980, numa homilia dominical, afirma: «Irmãos, a maior glória de um pastor é viver em comunhão com o papa. E quando vejo no seu magistério pensamentos e gestos semelhantes àqueles de que a nossa Igreja precisa, encho-me de alegria».
Muitas vezes diz-se que Romero era subordinado da teologia da libertação. Um jornalista perguntou-lhe: «Está de acordo com a teologia da libertação?». Romero responde: «Sim, certo. Mas há duas teologias da libertação. Uma é aquela que vê a libertação apenas como libertação material. A outra é a de Paulo VI. Eu estou com Paulo VI».
Gianpiero Pettiti, D. Vincenzo Paglia (arcebispo, presidente do Conselho Pontifício para a Família)
Trad.: SNPC
Publicado em 24.03.2017