"São João Paulo II publica essa Encíclica Centesimus annus para celebrar os 100 anos da Rerum novarum, a Encíclica de Leão XIII que é considerada o início da Doutrina Social da Igreja moderna, uma espécie de recomeço da Doutrina Social da Igreja, numa época nova, em um período novo da história. E quando João Paulo II publica essa Encíclica em 1991, ao mesmo tempo o mundo todo passa por uma reconfiguração política e social. Por que apenas dois anos antes, tinha acontecido a queda do Muro de Berlim e todo o sistema que se construiu na Guerra Fria, com o poder centrado nos Estados Unidos de um lado e poder centrado na União Soviética do outro - essa espécie de disputa entre capitalismo e socialismo - esse sistema, esse modelo, começa a ruir. E de fato, no mesmo ano que João Paulo II publica a Encíclica, no final desse ano a União Soviética vai se dissolver. Então o que João Paulo II pretende apresentar nessa Encíclica, são caminhos para levar adiante a missão da Igreja no meio da sociedade, nesse mundo novo, nessa reconfiguração do mundo como a gente conhecia e o que a Igreja tem a dizer para essa nova configuração política e social desse mundo. E é interessante que tem um trecho da Centesimus annus, o número 19, em que João Paulo II inclusive fez um balanço de quais modelos políticos tinham surgido ao longo do século XX, de certa forma como resposta ao avanço do totalitarismo comunista, o avanço do socialismo, principalmente no leste europeu, mas também regiões do mundo, de certa forma fez com que sistemas políticos diferentes, sistemas de estruturação da sociedade diferentes, aparecessem e se consolidassem em certas regiões.
Modelos políticos surgidos no século XX
E ele elenca 3 modelos desse tipo. A primeira resposta que ele elenca é o caminho da reconstrução de uma sociedade democrática, inspirado na justiça social. O que significa isso? É uma sociedade. um país. marcado por um crescimento econômico estável, saudável, em que as pessoas com emprego, com trabalho, podem construir um futuro melhor para si mesmas, para os seus filhos, para o próprio país. Nesse contexto, nesse tipo de sistema, os mecanismos do livre mercado eles são mantidos, mas eles são submetidos a um controle público. João Paulo II vai dizer, “o controle público que faça valer o princípio do destino comum dos bens da terra”. Ou seja, o mercado continua existindo, mas ele não pode ser, diz João Paulo II, o único termo de referência da vida associada, seja fora da vida individual e familiar, não pode existir apenas o mercado, o próprio mercado precisa de um controle, senão tudo fica submetido a uma lógica de consumo, não pode ser assim. Então nesse tipo de sistema existe uma abundância de oferta de trabalho, um sistema de segurança social sólido, existe liberdade de associação e os sindicatos agem de forma incisiva, existe previdência em caso de desemprego e existem instrumentos de participação democrática na vida social. João Paulo II elenca todos esses elementos. E tudo isso faz com que o trabalho seja um elemento da vida humana, uma dimensão da vida humana, que traz dignidade para nossa vida. O trabalho não é mera mercadoria, mas é uma dimensão fundamental da vida ligada à nossa dignidade.
E qual que é o mérito desse sistema que João Paulo II aponta? Ele, diante desse contexto, dessa pergunta sobre respostas ao comunismo, esse sistema priva o comunismo do potencial revolucionário, porque garantido cidadania, garantindo dignidade para todas as pessoas, combatendo a miséria e a desigualdade, não existe aquela pólvora na sociedade, onde uma ideologia radical, como o comunismo, pode-se instaurar. Então dos três modelos que João Paulo II elenca, é muito claro, como ele dá preferência para esse, como ele descreve esse modelo de modo positivo, enquanto os outros dois modelos ele descreve de modo negativo.
Quais são esses outros dois modelos? O primeiro é um modelo que se opõe ao marxismo, com a construção de sistemas de segurança nacional. Então é a proposta de um controle da sociedade, para tornar impossível a infiltração marxista. É um Estado controlador, que tende também a ter aspectos ditatoriais. Só que aí, esse tipo de resposta é um tiro no pé, porque diz João Paulo II, nesse caso para se preservar o povo do comunismo, corre-se o grave risco de destruir a liberdade, de destruir a primazia da pessoa. E é justamente por causa da liberdade, por causa da primazia da pessoa, que é preciso opor-se ao totalitarismo comunista. Então aqui, sob o pretexto de combater o comunismo, se chega aos mesmos resultados nocivos do comunismo. Então para João Paulo II esse não é o caminho, e é bem claro que não é! Quando se aventa esse tipo de sociedade, geralmente o que se tem em mente é mais um fantasma de comunismo, do que uma preocupação real com o risco das ideologias, e com a busca de uma forma melhor de estruturar a sociedade.
E por fim o terceiro modelo que João Paulo II lista aqui, é um modelo de uma sociedade do bem-estar, uma sociedade do consumo. Ela também quer derrotar o marxismo, mas ela procura derrotar o marxismo no terreno de um puro materialismo, diz João Paulo II. O grande argumento dela, digamos assim, é mostrar como que uma sociedade de livre mercado consegue uma satisfação mais plena das necessidades materiais humanas, do que aquela que o comunismo defende. Só que de novo é um tiro no pé, e nesse caso porque se permanece preso no materialismo, tudo é submetido à satisfação material. E com isso João Paulo II elenca a moral, o direito, a cultura, a religião, esses âmbitos perdem a sua autonomia, tudo isso vira um produto. Então João Paulo II diz que esse tipo de sistema coincide com o marxismo na total redução do homem à esfera do econômico e da satisfação das necessidades materiais. De novo, sob o pretexto de combater o comunismo, se chega a um dos seus resultados nocivos. Então esse tipo de sistema de uma sociedade centrada no consumo, esse tipo de sistema também não responde à primazia da pessoa ao valor da pessoa.”
A pessoa deve ocupar o centro
Nessa leitura que João Paulo II faz dos modelos políticos vigentes, fica claro que o grande critério é a pessoa, e por isso lá no começo da Encíclica, n. 13, ele fala que o erro fundamental do socialismo é de caráter antropológico, e ele vai definir isso da seguinte forma: “considerar cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico e social,” ou seja é a partir de uma concepção distorcida de quem é a pessoa humana, que se elabora um sistema social político e econômico nocivo. E esse é o grande critério que a gente tem em mente quando avalia esses sistemas, avalia as ideologias políticas. João Paulo II vai dizer “da concepção cristã da pessoa, segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade”.
E qual que é a concepção cristã da pessoa? Esse é um tema muito importante para a gente. O próprio conceito de pessoa, ele nasce a partir dos debates trinitários do século IV, quando o Dogma da Trindade estava sendo delineado nos Concílios. E ali para falar da Trindade é que se desenvolve esse conceito de pessoa, para falar das pessoas trinitárias, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E é muito interessante nesse sentido que se a gente pega o Compêndio da Doutrina Social da Igreja publicado em 2004, ele começa com uma belíssima catequese sobre o Dogma da Trindade. O Compêndio da Doutrina Social começa pela Trindade, porque ali, no mistério da Trindade, que é o mistério central da fé cristã, como diz o Catecismo, é a partir dali que a gente recebe luz para compreender todos os outros elementos da fé cristã. E o que a gente vê no Dogma da Trindade? A gente vê uma relação entre a pessoa do Pai, a pessoa do Filho e a pessoa do Espírito Santo que vivem em uma comunhão, que são um. Na Trindade a unidade não anula a multiplicidade, na Trindade cada Pessoa se concebe a partir da relação tem com as outras. Mas essa relação e essa comunhão que ela tece com as outras não anula a si mesma, pelo contrário, lhe dá identidade.
Ou seja, essa concepção de pessoa, que nasce a partir da compreensão do Dogma da Trindade, e que depois é declinada também na compreensão da pessoa humana, essa concepção de pessoa é um antídoto contra dois grandes perigos: o individualismo e o coletivismo. O individualismo como uma concepção do sujeito, que rivaliza sempre com os outros, em que tudo é competição, não existe cooperação a não ser por interesse próprio - e aí um destrói o outro, pela violência ou pela indiferença - e o coletivismo como uma noção, uma concepção, em que existe uma preocupação pelo todo que anula cada sujeito singular.
Nessa concepção existe um paradoxo: o bem do sistema, o bem da causa, o bem do todo, pode fazer algumas cabeças rolarem. Pode causar opressão e destruição do outro. Mas que bem do todo é esse, em que alguns precisam ser oprimidos, ser feridos, ser mortos, para que isso aconteça?
Então essas duas concepções – o individualismo e o coletivismo - são concepções que vão na direção contrária daquilo que o cristianismo apresenta como concepção de pessoa, e portanto como concepção de sociedade. Isso é muito claro justamente nas primeiras páginas do Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
Se a gente volta para Encíclica Centesimus annus, no número 49, João Paulo II vai falar um pouco sobre isso. Ele disse que é na múltipla atuação de relações que vive a pessoa. A pessoa vive a partir dessas relações. E essas relações não podem ser reduzidas a relações de mercado ou a relações dentro do Estado. A vida humana é muito mais rica do que isso.
E aí João Paulo II escreve uma coisa muito importante, ele diz o seguinte: “O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado, já que a pessoa possui em si mesma um valor singular, ao qual devem servir o Estado e o mercado. O homem é, acima de tudo, um ser que procura a verdade e se esforça por vivê-la e aprofundá-la num diálogo contínuo que envolve as gerações passadas e as futuras” e as futuras, ou seja, o homem sempre concebido a partir dessa teia de relações, numa horizontalidade com aqueles que vivem conosco hoje, mas também numa abertura para o passado e para o futuro. E nessas relações é que o ser humano se realiza, essas relações ultrapassam o limite do Estado e do mercado. Nós não somos só consumidores e nós não somos só peças dentro da engrenagem do Estado. Nós somos mais do que isso, e é nessa concepção cristã da pessoa, que a Doutrina Social da Igreja se inspira para propor critérios sobre as relações econômicas sociais e políticas em que a gente vive."
*Felipe Sérgio Koller, leigo, teólogo, Mestre e Doutorando em Teologia pela PUC-PR, professor dos cursos de especialização da Faculdade São Basílio Magno, em Curitiba, e da Católica de Santa Catarina, em Joinville.